Adivinha quem era? Um artista que pintou na galeria ainda em 1990, um dos primeiros a deixar sua arte por lá. Não o conheço, mas certamente ele achou o meu blog nas ondas cibernéticas
Considero suas palavras uma entrevista absolutamente pessoal que veio até mim sem eu pedir. Merecia, portanto, ser mais que um comentário.
Editei alguns fragmentos, mas boa parte do que ele escreveu está aqui. O depoimento integral pode ser lido nos comentários do post East Side Gallery. Com a palavra, o artista português Kim Prisu:
“Metamorfose das existências ligadas num móbil indefinido”
Fragmento da obra de Kim Prisu na East Side Gallery. Foto: arquivo pessoal do artista
O Muro de Berlim ( “Berliner Mauer” em alemão) foi erigido um ano antes de eu nascer em 1961. Só sei que quando tinha para ai os meus 11 anos dizia “ que era mais fácil de ir a lua de que passar do outro lado do Muro de Berlim.
E não é que em 1990, no serão de 23 de Junho o meu amigo e artista plástico Hervé Morlay dito VR, me bateu a porta do meu pequeno apartamento do “35\37 rue de Torcy em Paris 75018”, e me perguntou se queria ir a Berlim, que havia um projecto de pintar no muro na parte de Berlim Oriental (RDA).
O (Hervé Morlay) VR ia alugar uma carinha de caixa fechada para 15 dias. 12 horas depois na manhã seguinte estávamos a caminho de Berlim. Passamos uma primeira vez a fronteira França Alemanha. Eu até tinha o meu passaporte caducado mas só me apercebi depois. (…)
Atravessamos a Alemanha ocidental e tivemos de novo de passar outra fronteira, aí no silêncio, mas tudo correu bem. É dizer que a situação já estava no caminho da abertura, e entramos numa auto-estrada toda cercada por uma grande rede com arame farpado, miradouros com guardas armados. Dizíamos um para o outro “e se a um deles lhe passasse pela cabeça de nos dar um tiro?”.
Antes de entrar em Berlim mais uma fronteira. Era para mim muito estranho passar duas fronteiras no mesmo país. Fomos a ter a casa de um artista Alemão “A. Paulun” num Bairro perto do muro no nº 2 da rua “Wrangel” em frente a igreja “St. Thomas” … Foi também aí perto de “St. Thomas” que pela primeira vez atravessei o Muro.
No sitio, ao que me contaram, tinha morrido o maior número de pessoas. Os atiradores estavam colocados às janelas dos prédios do lado oriental. Hoje encontra-se lá um jardim.
Na 1ª semana existia nessa grande brecha, (…) casotas de madeira com guardas que faziam ofício de fronteira. Precisava-se ainda de mostrar o Passaporte, mas já com muita descontracção. Na segunda semana estavam no chão, isso era nos primeiros dias de Julho 1990. Sentia-se a liberdade, não sei como explicar.
Em França um dia, um Português que teve presente em Lisboa (e que tinha na sua pequena oficina de tipografia lá em Paris uma foto com ele e os soldados da revolução em cima de um caro de combate no 25 de Abril 1974) disse-me que naqueles meses em Lisboa sentia-se a liberdade. Era como se a pudéssemos tocar com os dedos da mão.
Senti o mesmo, por isso lembrei-me dessas palavras e chamei o 1º painel “O povo unido nunca será vencido” em recordação. Eu, o meu amigo Hervé Morlay (VR) e o A. Paulum obtemos um encontro com a pessoa que se ocupava do projecto “East Side Gallery”.
Já na segunda semana, entre tanto andamos por lá a pintar entre os dois muros e os miradouros. Só nos ficava 4 dias antes de voltar para paris para entregar a carinha. Foi assim que tive de fazer a 1ª pintura (de 1990) em 3 dias, com muita energia.
A 1ª vez que tivemos em frente desse muro do lado oriental na avenida “Muhlenstrasse” , fomos ver se havia qualquer graffiti. Nenhum. Aquela parede chamava a cor para esquecer que nesse tronco tinham tirado a vida a 9 pessoas… Ainda há muito para contar sobre essa 1ª vez que fui a Berlim mas isso dava provavelmente um filme.
Desta vez, em fim de 2008, fui pela 1ª vez contactado para refazer a minha pintura. Fiz um contrato com eles, como todos os outros pintores que vão refazer a cópia da pintura deles. Os mesmos que pintaram sobre esses 1300m. São 118 artistas para 105 pinturas, 21 países representados, convertendo o lado Este (oriental) do Muro na maior galeria do mundo ao ar livre.
O beijo entre o líder soviético e o seu correligionário alemão oriental é a peça mais célebre, e a que o artista Dimitrij Vrubel pede 15mil €. Mas por agora eles não querem lhe dar essa soma. Dizem que é para todos igual. (…) ele executou-a, pedindo desculpa a cidade de Berlim e oferecendo o cachet a uma instituição caritativa.
(…) Comecei a pintar na terça-feira 26 de Maio, num dia de trovoada, e foi como se tivesse recebido dela uma energia positiva que me meteu fora de mim. Mas antes mesmo de ir o entusiasmo era já enorme.
(…) Há naquele bairro do outro lado do rio nas costas da “East-Side Gallery” muitos ateliês de artistas, pelos quais lutam porque os políticos e os empreiteiros querem se apoderar para fazer um bairro mais snob e para turistas. É que a “East-Side Gallery” encontra-se mesmo no centro de Berlim. (…)
Estive em frente, de novo no mesmo lugar exacto. A 1ª vez não sabia o que havia por detrás, o escadote não chegava para eu ver do outro lado, desta vez existia um pedaço que foi desviado para o lado, o terreno foi comprado pela companhia O2, que construiu em frente um óvni, (é a primeira impressão que tive quando vi aquela arquitectura), um pavilhão para espectáculo e eventos desportivos. (…)
O muro já não me impressionava como da 1ª vez. Já não tinha para mim o mesmo imaginário… Mas comecei como se tivesse de fazer a cópia do de 1990. Mas não me sentia bem. Comecei a pintar deixando a emoção do momento sair, interrompido pelos turistas e pelas entrevistas de jornalistas.
Mas a um momento esqueço tudo o que me rodeia, fico só em frente do muro, e começo a pintar sem me preocupar. Um fundo abstracto, cheio de escritos em varias línguas, que cada dia pintava com mais energia, alegria. Quando comecei a desenhar, as primeiras cabeças vinham mais suaves.
A minha visão desse povo tinha mudado, é que os filme e a História recente do século 20, e a escola na França, nos criaram um imaginário no qual a Alemanha era um inimigo de 2 guerras mundais (…).
Mas desta vez a ideia desse povo tinha mudado em mim. Das duas vezes que lá vivi, 33 dias em tudo, me levaram a uma outra visão desse povo e dos outros que misturados coabitam com eles. Nunca mesmo nunca, das 2 vez senti agressividade. Andei sempre por todo lado e por vezes houve sítios que se fosse em Lisboa ou Paris passava ao lado.
(…) Quando chegou Jörg Weber (…) e outros responsáveis da “East Side Gallery”, comecei-lhe a falar de uma filosofia e de um estado de espírito que tinha em Portugal com o grupo dos Inteiros, o “Impensamental”. E que já estava a “Impensamentar” esta nova pintura a partir da memória da sensação e do desenho de 1990, em uma emoção e sensibilidade do ritmo do vivido de hoje. Era como uma metamorfose do pensamento interior que se mentalizava numa nova obra.
Gostaram da explicação, entenderam como era que eu trabalhava, ele estava a gostar da energia da minha nova representação, e disse-me que por ele podia continuar. Mas estavam com medo, é que havia também a aprovação da responsável da câmara, e que corria o risco de não ser pago, mas eu respondi que prendia esse risco.
A partir de aí foram 9 a 12 horas diárias a pintar, e ainda a sair à noite ver eventos culturais. Ao fim ele me disseram que iam defender a minha obra, e que era obra e atitude de grande artista. Dirk Szuszies num jantar em casa de ele, disse que eu tinha tido uma atitude muito revolucionária, anarquista. Eu retruquei “não, só uma atitude de Inteiro”. Dei-lhe o nome a está nova obra “Metamorfose das existências ligadas num móbil indefinido.
Vim de lá muito feliz. A inauguração vai começar a 6\7 de Novembro até dia 9 de Novembro, no qual faz 20 anos da queda do muro. E como disse Jörg Weber: “não nos compreendemos bem, mas gracejamos muito com a tua pessoa e partilhamos uma grande e bela energia”.
Sentes que foi um povo que muito sofreu, mas encaram a vida de uma maneira muito humilde, e com muita energia objectiva. (…) E para concluir, o meu painel foi aceito.
Kim Prisu. Berlim, Maio-Junho 2009